segunda-feira, 21 de julho de 2008

Temperos da Infância

Aprendi a cozinhar desde que me entendo por gente.
Venho de uma família "temperada". Minha avó, criatura generosa nas risadas e na culinária, foi a responsável por muitos de meus carros-chefe na cozinha. Minha mãe, embora não fosse uma entusiasta das panelas, tinha mãos de padeiro. A lembrança do aroma de suas dominicais e douradas roscas da rainha esparramadas sobre suas formas, abundantemente recheadas de goiabada, me água a boca e os olhos.
Meu pai, por outro lado, intrigante mistura de poeta, intelectual, professor e cozinheiro, com pés no passado, cérebro no presente e com belos olhos azuis pousados no futuro, adorava ler e cozinhar. Com freqüência era possuído de surtos literário-gastronômicos, dos quais surgiam pratos como Stroganov de camarão ao molho javanês, certamente inspirado no conto de Lima Barreto, “O Homem que sabia Javanês”, assim como a primeira feijoada light ecológica de que tenho notícia. Obcecado por aipo e alho-poró, estes eram onipresentes em quaisquer de suas receitas, mesmo que fosse um vatapá.
Almoços para quarenta, cinqüenta pessoas eram acontecimentos freqüentes. Meu pai, que modestamente se intitulava “o maior cozinheiro da América Latina”, fazia questão de prepará-los, para horror de minha mãe e Rute, nossa empregada.
Lá pelas tantas da noite, fardado com seu avental que ostentava os dizeres Genius at Work estampados no peito, e munido de uma pilha de pelo menos cinco livros de receita, além de uma garrafa de bom uísque, designava em tom professoral tarefas para Rute. “Corte uma xícara de aipo, outra de alho-poró”, e assim por diante. Suas ordens foram a minha primeira noção de mis-en-place.
Noite afora, a sós com suas cumbucas de temperos e sua garrafa de uísque e às voltas com suas receitas, ele misturava e cozinhava seus ingredientes, só Deus sabe como.
No dia seguinte a cozinha estava um caos. Meu pai jamais se dignou a desempenhar as tarefas ancilares, como ele as chamava. Mas a comida era muito boa.
Eu me lembro de um daqueles almoços em que descobri as borbulhas do champanhe. Meu pai de vez em quando me dava um pouco de vinho misturado com água e açúcar que ele servia numa taça de vinho, mas não me deixava provar champanhe. Por ter bolhas como nos refrigerantes e ser estritamente proibido, o líquido exercia um fascínio irresistível sobre mim. Naquele dia, eu entrei na cozinha, por acaso deserta naquele momento, e vi uma garrafa aberta sobre a mesa. Não tive um momento de hesitação. Peguei no armário o maior copo que encontrei, enchi até a boca e levei para o quarto. Bebi o copo inteiro com a sofreguidão dos culpados. Eu adorei o champanhe. Meia hora depois minha mãe me achou estatelada, no sono profundo dos bêbados. Eu soube que ela ficou totalmente nervosa e que ligou para o pediatra que a acalmou e disse que eu ia dormir até o dia seguinte.
Além da ressaca, ainda tive que ouvir uma bronca gigantesca de minha mãe. Pelo menos não fiquei de castigo. Meu pai não fez comentários.

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