Uma das passagens mais singulares de minha vida fo...
Uma das passagens mais singulares de minha vida foi minha viagem a Rússia. Em 1997, minha irmã Patrícia e eu resolvemos visitar minha irmã mais velha, Ciema, que na época morava em Moscou.
Chegamos muito tarde, passava da meia noite, numa gélida noite outonal, com nossa irmã esperando no aeroporto, metida num casaco de peles e um gorro cossaco, com olhos e nariz vermelhos de frio e de alegria. Lá fora nevava.
No carro que nos levou para a casa de minha irmã, com o nariz colado na janela, eu tentava absorver ao máximo a sensação de euforia por estar num lugar para mim tão improvável, assim como guardar de forma indelével as primeiras impressões na memória.
A Rússia é grandiosa. Imensos vultos dos prédios, avenidas com largura amazônica, igrejas bizantinas com torres douradas passavam pela janela do carro, enquanto falávamos as três sem parar, sem terminar frases ou assunto, na ânsia de colocar em dia anos de ausência.
Minha irmã morava num grande apartamento antigo, em forma de U, de pé direito muito alto, com assoalhos de madeira que rangiam, que me fazia lembrar um daqueles filmes europeus de arte que passavam no Cinema Paissandu. Os cômodos eram enormes e sua disposição era completamente diferente do que estamos acostumados. O centro do U era a sala de jantar. À esquerda ficava uma sala de estar pequena, seguida de outra maior. Logo após havia uma grande biblioteca e, finalmente, o quarto do casal com um banheiro. Do lado direito ficava a outra ala da casa com um quarto de hóspedes, um escritório e a cozinha.
Eu me lembro dos gatos invisíveis, pois ouvi seus miados sentidos todas as noites, sem ter visto sequer um vestígio de bigodes ou caudas.
Foram dias e noites únicos: os dias transbordantes de palácios, igrejas, monumentos heróicos, museus preciosos, em tal quantidade que hoje em dia, ao tentar me lembrar, me vem à mente a memória caleidoscópica de tudo que vi. As noites eram repletas de conversas regadas a vinho tinto e nostalgia.
Numa manhã, partimos para Smailova, uma pequena feira de artesanato, que acontecia em um local afastado da cidade. A feira oferecia o que havia de melhor em termos de objetos. Os famosos ovos pintados com tinta de claras de ovos, linhos da Bielo Russia, porcelana do Urbesquistão, jóias em prata com zircônio e malaquita, enfim o paraíso para os arroubos compristas que sempre acometeram a família.
Fazia sol e estava gelado. Minhas irmãs, indiferentes ao frio, certamente aquecidas pelo calor das compras, mantinham sua marcha consumista num ritmo metódico e demolidor. Não havia nas barraquinhas objeto que escapasse a seus olhares avaliadores e meticulosos, que examinavam cada artigo com o mesmo frio interesse, enquanto arrematavam aqui e ali os itens escolhidos a dedo.
Pessoalmente, não herdei o gene consumidor de forma exacerbada, e logo comecei a me entediar. Minhas botas, embora forradas, não conseguiram isolar o frio que vinha do chão gelado, e meus pés começaram a doer, como houvesse agulhas neles fincadas. Estava com fome e frio. Por algumas vezes chamei minhas irmãs, as quais nem se deram ao trabalho de me olhar.
De repente, um cheiro maravilhoso me invadiu. Alguns metros adiante, numa barraquinha, um homem fazia uns espetinhos de porco, assados na brasa, bem no estilo churrasquinho de gato que a gente vê nas portas das oficinas por aqui. Eu me aproximei, e, na linguagem universal dos gestos, mostrei a ele que queria comprar um espetinho. O homem me fez uma pergunta. De alguma forma eu compreendi que ele queria saber de onde eu vinha. Respondi: “ Brasil” .
Imediatamente ele abriu um sorriso meio desdentado e retrucou: “ Pelé”.
Eu esfreguei meus braços demonstrando frio e ele então falou : “ Vodca. Sibéria” .
Encheu então um copinho de plástico, desses de refrigerante, cheio até a borda com uma vodca vinda da Sibéria e me estendeu.
Meio receosa, tomei um gole da vodca super gelada, enquanto mordia meu espetinho.
Imediatamente uma sensação maravilhosa de calor começou a correr pelo meu corpo. Meus pés pararam de doer e eu pensei: “Engoli um cobertor “. O homem percebeu minha reação, pois deu uma boa risada.
Eu tomei o copo de vodca todinho e nem fiquei tonta. Foi o melhor churrasquinho de gato que comi na minha vida. Minhas irmãs nem notaram minha ausência.
A Rússia é o país das conservas. Por causa dos longos invernos, os russos fazem conserva de quase tudo. Nos mercados e feiras. eu via vidros e mais vidros de todos os tipos de conserva, beterraba, cebola , alho, pepinos etc. A cozinha tradicional russa é rústica e se fundamenta em poucos ingredientes, devido ao clima inóspito. Os ingredientes mais importantes são os cogumelos, peixes, repolho e beterraba. Para temperar eles usam aneto. Me lembrou o Nordeste brasileiro, onde colocam coentro em tudo.
Um dos meus objetivos nessa viagem era trazer a receita original do stroganov, prato que certamente marcou a infância de muita gente. Por incrível que pareça, não foi fácil. A receita não faz parte da cozinha tradicional, e só é executada – muito mal, diga-se de passagem - em hotéis e restaurantes para turistas.
Após várias tentativas, consegui com uma russa, conhecida de minha irmã, especialista em assuntos brasileiros da embaixada, que pesquisou e me passou a receita. Devo dizer que não tem absolutamente nada a ver com o que conhecemos aqui como estrogonofe. O prato é feito com carne de vitelo ou porco, conserva de pepino, cogumelos e é temperado com aneto, é claro. Ao final adicionam smetana, que é um creme de leite tão espesso que parece manteiga. Servem-no com batatas cozidas. Provei o prato num hotel em São Petersburgo e não gostei.
O melhor da viagem ficou por último. No dia anterior a nossa volta para o Brasil conseguimos ingressos para assistir ao balé de Bolshoi. A peça que estava em cartaz era o Quebra Nozes, uma das minhas prediletas.
De tarde fomos comprar caviar para trazermos. Na época, pouco tempo depois da Perestroika, as lojas de caviar ainda pertenciam ao governo. Do lado de fora não havia vitrine e dentro, vendia-se de tudo, de esmalte a reprodução de ícones. Num canto da loja ficava um balcão refrigerado, onde as ovas ficavam expostas em grandes recipientes plástico. Havia quilos e mais quilos delas. De vários tipos e tamanhos, sevruga, beluga, ossetra, cada espécie com suas classificações, de acordo com o tamanho e qualidade.
Escolhia-se o tipo e tamanho desejado. A vendedora então dava uma pequena provinha numa colherinha de plástico. Se a mercadoria fosse aprovada, ela preenchia um pequeno recibo em duas vias e o cliente assinava. O caviar era então colocado numa embalagem plástica, dessas em que se colocam azeitonas em conserva e embrulhado num papel pardo.
A vendedora, que fornecia regularmente para minha irmã nos recomendou que levássemos, especialmente o ossetra, pois seu tamanho e qualidade estavam excepcionais. Assim o fizemos e voltamos para casa.
A noite partimos para o teatro. Não conheço palavras que possam descrever a grandeza daquele teatro, a beleza de suas frisas, a graciosidade de cada curva e a magnificência de sua cortina, cujo bordado a ouro levou anos e os olhos de algumas centenas de bordadeiras.
Aos primeiros acordes da orquestra, meus olhos se encheram de lágrimas e assim permaneceram durante toda a peça. Foi um daqueles momentos que parecem durar eternamente e ao mesmo tempo é com se passassem num piscar de olhos. Eu mal respirava.
Voltamos para casa, com a neve caindo, e com a mágica dentro de nós.
Ao chegarmos, minha irmã mais velha, que inventara um pretexto para não ir, nos aguardava com uma mesa com pães, cebolinha picada, aneto picado( é claro), smetana e caviar.
Havia vários tipos, em tigelinhas de cristal, sobre camadas de gelo picado, cada um com sua colherinha de madrepérola. Ao lado, um balde gelado, com algumas garrafas de champanhe.
Posso dizer que eu tive a minha noite de czarina. Afinal de contas, era a minha última noite naquele país e a primeira vez que experimentava caviar fresco. Lambuzamos fatias e mais fatias de pão fresquinho com camadas generosas de caviar, com um toque de cebolinha e smetana (sem aneto, é claro). Tomamos champanhe até altas horas, inebriadas pelo balé, pela bebida, pela vida.
De madrugada, ao me deitar na cama quentinha, cheia de edredons, eu agradeci a Deus e adormeci, embalada pelos acordes de Tchaikovski, que ressoavam em minha mente e pelos miados dos gatos invisíveis, que moravam no telhado..
Nunca mais voltei à Rússia.
Receita de Beef Stroganov (adaptada)
3 1/2 c.sopa de manteiga sem sal
1 colher de sopa de farinha de trigo
1 xícara de caldo de carne
1/2 kg de filé mignon cortado em tiras
2 colheres de sopa de óleo ou azeite
1/2 xícara de cebola cortada em juliana
1/2kg de cogumelos brancos( paris ou cremini)cortados em quatro
4 pepinos pequenos em conserva( cornichons)
1/2 xícara de creme deleite azedo
1 colher de sobremesa de mostarda dijon
2 colheres de sopa de dill(aneto) fresco picado
1 cálice de conhaque ou vodka para flambar
sal q.b.
pimenta q.b.
Preparo.
tempere a carne com sal e pimenta. passe pela farinha.
Derreta metade da manteiga com metade do óleo, numa frigideira grande. Frite a carne de todos os lados, sem deixar queimar. Jogue a bebida e flambe.retire e reserve.
Na mesma frigideira, acrescente o restante do óleo e manteiga, a cebola e salteie.
Junte a mostarda, os cogumelos e refogue. Junte o caldo. Deixe o líquido reduzir até espessar.
Antes de servir, volte com a carne, junte o dill, os pepinos cortados em rodelas e
o creme de leite. verifique o tempero.
Sirva com batatas cozidas, ou se preferir, com massa larga e longa.
Um comentário:
Vitória querida , adoramos o Blog o texto é maravilhoso e lembramos que quando vc fez aquele Jantar de 50 anos lá no Restaurante foi exatamente em 1997.Mande seu email que queremos falar com vc, saudades e veja nosso Blog
www.restauranteosesquilos.blogspot.com
mil beijos
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