segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Tem gente que gosta de sofrer...

É verdade. Tem gente que não consegue se divertir e que quando vai receber os amigos transforma a ocasião num calvário.
Esse tipo de anfitrião é dominado por um misto de perfeccionismo e autopiedade, sério candidato ao troféu “coroa de espinhos”.
Faz questão de fazer tudo sozinho. Escolhe o cardápio mais complicado, com os ingredientes mais difíceis de serem encontrados. Começa os preparativos dois ou três dias antes, vira noites cozinhando e cuidando de detalhes.
No dia do jantar acorda às cinco horas da manhã, vai aos mercados comprar os ingredientes que “só podem ser comprados no dia”, todos raros. Após uma maratona acaba achando o que queria. Volta para casa e, ansioso (acha que não vai dar tempo de fazer tudo), entrega-se a uma atividade frenética. Cinco minutos antes da hora marcada, toma um banho rápido, veste a primeira roupa que vê. Junta as forças que lhe restam, arma um sorriso estóico e vai receber os convidados.
Passa o jantar esperando os elogios que lhe são “justamente devidos”, e que nunca são suficientes. Quando os convidados vão embora jura que nunca mais convida ninguém, porque os amigos “não lhe dão o devido valor”. Estes vão para casa achando que o fulano(ou fulana) cozinha bem mas é um chato.
Há alguns anos fui convidada para um jantar, oferecido por um amigo comum. Tratava-se de uma pessoa de profundos conhecimentos tanto culinários, como enológicos. Ao chegar me deparei com uma mesa posta com tantos copos e talheres que era difícil dizer quais eram os meus e os do vizinho. Ao lado de cada prato havia uma folha de papel e uma caneta. Logo que eu e os convidados nos sentamos, iniciou-se uma sucessão quase interminável de pratos e vinhos, como nos banquetes do Renascimento. Constatamos, então, que o papel e a caneta lá estavam para que pudéssemos fazer anotações sobre cada prato servido, descobrir seus ingredientes e dar notas. Acreditamos que todos os convidados sentiram-se numa espécie de sabatina, em que todos evidentemente foram reprovados. Cá entre nós, sabe-se que alguns sucumbiram aos excessos e à tensão gerada pelo teste e passaram mal.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Uma Pitadinha

É o que faz a diferença.
O que faz um prato ser inesquecível? Será a sua apresentação primorosa? Ou quem sabe suas texturas impecáveis?
Não há escola de culinária, universidade de gastronomia que ensine o grande segredo da “pitadinha”.
Conforme Herman Senn bem resumiu em seu compêndio O Livro dos Molhos(1915) “ é muito difícil ensinar alguém a temperar” .
Jamais me esqueci de um ensopado bordalês( que para mim era exatamente igual a um boeuf bourguignon) que comi num pequeno restaurante no interior da França, já se vai um longo tempo.
Havíamos dirigido por horas e já passara do horário de almoço.
Chegamos a Saint Emilion por volta de das duas horas da tarde.
Embora fosse outono o dia estava perfeito.Sol. Um pouco friozinho....
Claro que a fome era tenebrosa e já estávamos dispostos a parar em qualquer posto ou coisa que o valha e comprar pão, queijo, etc, enfim, o lanchinho básico francês, quando, ao dobrarmos a esquina, avistamos o pequeno bistrô e resolvemos arriscar.
Era bem simples e estava aberto, por um desses fatos inexplicáveis da vida.
O restaurante estava vazio e nos sentamos junto a janela. A cidadezinha era bucólica e simpática, com suas ruelas e arquitetura medievais, e belos vinhedos a sua volta.
Não havia cardápio e o dono nos explicou que naquela hora só havia o tal ensopado que havia sido servido no almoço.
Não havia alternativa: era pegar ou largar.
E lá veio ele, trazendo consigo uma cesta de pães quentinhos, batatas cozidas, e uma terrina de porcelana, repleta de nacos de carne, cogumelos, ervas, pequenas cebolas, tudo mergulhado no melhor molho que já provei. Rico, espesso, perfumado, intenso, pródigo em aromas e sabores, trazia a cada garfada um novo prazer. Regado com uma garrafa de vinho da região, transformou nossa tarde outonal em momentos que jamais esquecerei.
Agradeço a Deus, até hoje, a fome que nos fez provar uma das melhores coisas de nossas vidas.

Recentemente, ao ministrar uma aula sobre molhos, eu me lembrei daquele prato...
Para mim, o componente secreto de um molho, é uma pitadinha da mistura mágica obtida pela ousadia e sensatez, criatividade e respeito pela tradição, generosidade e prudência, conhecimento e humildade, coragem e força de vontade, que se chama talento.

sábado, 9 de agosto de 2008

Feijoada no Apê






















(Acima à esquerda detalhe da mesa, à direita o pessoal na expectativa, logo abaixo à esquerda a dita cuja, o pessoal se concentrando e "last but not least"a equipe operacional))
Pois é. Parece que o inverno caiu naquele domingo. Foi um daqueles raros, semi chuvosos, em que a gente acorda e não tem nada pra fazer...
A maior sorte: rolou uma feijoada daquelas, bem carioca, onde não faltaram conversas, boa companhia, bom papo, caipirinha, cerveja e, é claro, feijão.
O motivo era o aniversário de Rodrigo ( meu marido e personal sommelier) que fez aniversário em junho ( mas quem se importa?)
Feijoadas são uma tradição na família.
Promovidas por meu pai, suas feijoadas literárias tornaram-se antológicas e entraram para os anais da história familiar.
Entre copiosas linguiças e garfadas de feijão, seus amigos literatos e acadêmicos recitavam aos berros poesias e trechos da mais pura e seleta literatura portuguesa. O repertória era eclético: tinha Camões, Pessoa, Suassuna, Machadão, Drummond ( um must), e até dicionário ( Sempre que o Aurélio comparecia).
Meus convidados, embora menos versados nos meandros de nossa literatura, nem por isso fizeram feio. O papo rolou solto até às dez da noite, quando o último se foi e apaguei as luzes da sala.
A feijoada foi cozida nos conformes. Lentamente, durante toda a noite.Cada carne na sua hora, escaldada que é pra não pesar. Levava cachaça(dizem que fica mais leve), levava laranja( também dizem que fica mais leve), e vinha com tudo dentro.
De sobremesa pudim de leite daqueles sem furo. Aqui vai minha dica: para se fazer um pudim de consistência bem cremosa colocar algumas camadas de papel toalha entre a forma do pudim e o tabuleiro, e encher o tabuleiro com água até a metade da altura da forma do pudim e manter o forno a 160 C.
Nada mais tenho a declarar, a não ser reproduzir o comentário emocionado emitido por minha amiga Lulu, já embalada pelos devaneios gastroetílicos: "um dois, feijão com arroz....