sexta-feira, 10 de julho de 2015

Buenos Aires: O Óbvio e a Meia Furada

Buenos Aires: O óbvio e a meia furada.

A vida me tem sido generosa.  As oportunidades têm batido à minha porta com frequência. Ë como minha mãe dizia, oportunidade é um bicho cabeludo pela frente, e careca por trás.  Portanto, lá fui eu de novo botar o pé na estrada.  Alguns amigos me convidaram para acompanha-los num périplo gastronômico por Buenos Aires.
Fomos atrás do obvio: vinho, carne e tango (eu).
Alguns torcerão  seus narizes. E os restaurantes contemporâneos, com menus degustação, chevicherias, peruanos, italianos ? Irei a cevicherias e comerei comida peruana no Peru. Irei a restaurantes italianos na Itália. Quanto a cardápios degustação, há muito que me entedio depois do terceiro prato.
À medida que envelheço, a simplicidade me atrai. Sabores nítidos, texturas definidas, refogados, comida de panela.
Por conseguinte, descobrir qual a melhor carne de Buenos Aires, me pareceu uma missão digna e necessária.
Chegamos a Buenos Aires lá pelas tantas, e, decididos, partimos para a primeira casa.
Tratava-se de uma das mais tradicionais casas de carne de Buenos Aires, a Mirasol, onde eu já havia estado há cerca de um ano.. Decoração estilo anos 50, garçons de summer, maitre de smoking - o tempo parou naquele lugar.
A nossa volta, argentinos de terno, famílias e mesas de amigos nos indicavam que estávamos em um estabelecimento frequentado pelos locais.
Por coincidência, o mesmo garçom que me havia atendido na outra vez me reconheceu e veio nos atender. Ernesto, era o seu nome. E usufruímos do privilégio de ser reconhecido em um restaurante.
Logo nos sentamos e pedimos nosso primeiro Malbec.  Um Achaval Ferrer 2013, um pouco fechado no inicio, porém, depois de algum tempo, abriu e revelou-se um belo acompanhamento para nossas carnes.
E estas chegaram. Me perdoem os vegetarianos de plantão, mas o homem é carnívoro. Estamos no topo da cadeia alimentar. A nossa frente estavam ojo de bife, vacío, molejas, asado de tira,  nacos suculentos, grelhados à perfeição, acompanhados por papas fritas ( de verdade ).  Tem coisas que não se explicam. Não sei se foi o frio ou a fome, o fato é que foi uma das melhores refeições dos últimos tempos. Sabores simples, quase primitivos porém opulentos, regados a vinhos copiosos, e acompanhados pelo riso solto, fizeram daquela noite um marco em minha memoria. Cheguei ao hotel em paz com meu estômago e com minha alma.
Nos próximos dias continuamos a nossa maratona em busca da melhor carne: La Cabreira, Estilo Campo, La Brigada, La Cabaña, La Caballeriza...
Ao cabo de 5 dias, passei a sonhar com um boi mugindo ao meu lado. Devo confessar que embora todas servissem excelente carne, para mim, sem dúvida, a Mirasol foi a melhor.
Em minha ultima noite em Buenos Aires, recusei terminantemente qualquer menção a comida e fui assistir ao show de tango.
Brega? Eu? Talvez. Pouco importa. Como disse antes fui atrás do óbvio.
Procurei o melhor espetáculo de tango de Buenos Aires, num belo teatro, em estilo clássico. Sentei-me em meu camarote, só. Naquele momento desejei ter um leque, como as damas de outrora, mas ao meu alcance, somente meu celular. Sinal dos tempos...
Começou o espetáculo. Tango, tango, tango. Clássico, encenação de milongas, contemporâneo... o tempo passou sem eu perceber.
Chega o numero final. Os dançarinos principais, um belo casal,  executam a dança.
Ela, pele alva, braços e pernas torneados de bailarina, vestida de negro, contrastava com ele, moreno, esguio, cabelos escuros, também em negro.  O palco era deles. Sensualidade, graça, força, leveza... O lamento pungente do bandoneon pontificava na orquestra.
E aí,  estava lá. O buraco na meia. Um ponto branco, na altura da coxa revestida de negro, aparecia pela fenda do vestido.
Não! Minha vontade era gritar: “ – Sua meia está furada! “. Todo o encanto da cena havia sido tragado pelo buraco branco. Não conseguia desviar meu olhar do pequeno buraco, que lenta e inexoravelmente aumentava, à medida que a dançarina executava os passos e rodopios.
De repente, como se um raio me houvesse atingido, tive um momento de absoluta clareza. O buraco na meia era a representação da humanidade que há em nós. E a perfeição da humanidade reside nas imperfeições que carregamos.
Passei, então, a fantasiar que existia um grande amor entre os dançarinos e que ambos estavam ali a demonstrar um ao outro o sentimento mútuo, indiferentes à  plateia que os rodeava, indiferentes às mundanidades. Nos momentos em que a humanidade se derrama sobre nós, sob a forma de sentimentos, sejam eles amor, paixão, ódio, quem se importa? Meia furada, a maquiagem escorrida, o cabelo desfeito, o botão que falta na camisa... Que importa? Quem se importa?
A dança acabou. No meio do palco, arfantes, com o suor escorrendo por suas têmporas, os dançarinos se curvam agradecendo os aplausos. Eles se entreolham e se retiram. O show acabou.
Fui atrás do óbvio e achei. Nas refeições generosas, nos vinhos copiosos,, nas carnes opulentas, nas risadas soltas, no tango e na meia furada.
Não chores por mim. Argentina, pois voltarei.
Sempre atrás do óbvio.

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