As Cozinhas do Mundo
Meu pai era um homem elegante e um apreciador da boa mesa. Foi ele um dos primeiros apreciadores de vinho que conheci. Possuía um termômetro para servir vinhos na temperatura correta, conhecia as regiões mais importantes da França e Itália e não hesitava em provar a culinária de culturas diferentes.Leitor ávido, leu até o último dia de sua vida. Sua biblioteca culinária, herdada por mim, era das mais ecléticas. Misturados entre clássicos da cozinha francesa havia exemplares sobre cozinha chinesa, japonesa, italiana, judaica, grega, coreana, etc. Havia outros, mais estranhos, sobre cozinha para artríticos (adquirido por causa de uma bursite), cozinha ecológica (uma prévia da cozinha orgânica), cozinha para robots (ele comprou um robotcoupe), cozinha para pressão alta e, é claro, cozinha para colesterol.
Já naquela época, quando não se cogitava de orgânicos, ele já expressava preocupação com a origem dos ingredientes, e acreditava piamente nas propriedades curativas dos alimentos.
- Os legumes e frutas são alimentos de proteção – preconizava ele.
Sua obsessão, conforme anteriormente mencionada, era o alho-poro. Não havia receita em que não o empregasse. Até na feijoada. Eu descobri por acaso, pois uma noite, nas vésperas de um de seus almoços para os amigos, eu o pilhei na cozinha adicionando uma significativa quantidade do dito cujo na panela do feijão. Ele deu uma risadinha meia sem graça, bem característica, e comentou: - Alho-poro: ingrediente excepcional.
Foi ele quem me apresentou as diferentes cozinhas, que na época eram conhecidas por poucos.
Grande admirador da cozinha chinesa e de sua diversidade, dizia ele que os chineses são capazes de cozinhar qualquer coisa que ande com as costas voltadas para o sol.
Recentemente pude comprovar sua afirmação, ao receber pela internet várias fotos de iguarias chinesas vendidas nas ruas de Pequim: cobras, lagartas, escorpiões e outros seres rastejantes, artisticamente arrumados em espetinhos para serem devidamente degustados pelos ávidos fregueses.
Meu pai dedicou-se às diferentes cozinhas do mundo com o mesmo entusiasmo, de acordo com seus interesses e veneta.
Houve uma época, por exemplo, em que cismou com fondue. Comprou uma panela e 12 garfinhos, e todo o fim de semana era fondue para a família. É claro que a mesa virava uma praça de guerra onde a panela, localizada no centro, era o alvo a ser conquistado e os comensais os guerreiros, a lutarem com seus garfinhos por um naco de carne ou de pão ( os fondues eram alternadamente de carne ou de queijo). Ganhavam, é claro, os mais espertos e os mais famintos.
Minha mãe, que insistia em manter as aparências de civilidade e não perdia a pose, saía sempre com fome. Nós, por outro lado, nos engalfinhávamos sem a menor classe, na luta pelo último pedaço, mosqueteiras da gula.
Graças a Deus, meu pai logo depois passou a se interessar pela culinária italiana, muito provavelmente por influência de minha mãe, que já não agüentava mais aquelas cenas grotescas na mesa.
Suas feijoadas tornaram-se antológicas e suas macarronadas fizeram história na família. Sua receita de espaguete a bolonhesa é para mim a melhor que já provei até hoje.
Ao completar dezoito anos, meu pai me levou com ele para uma viagem ao México e Estados Unidos, onde ele foi a trabalho.
Foi a minha primeira viagem internacional. Foi nessa viagem que fui apresentada às cozinhas do mundo.
Meu pai, com sua visão peculiar da realidade, me deu de presente para ler no avião, em vez de um guia turístico qualquer, Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e A Erva do Diabo, de Carlos Castanheda. E assim, na alegre companhia dos fantasmas dos antepassados de Pedro Páramo, e de Don Juan e suas experiências alucinógenas com mescal, lá fui eu para o México.
O México é um país colorido, que mistura história, religiões, tradições, revoluções, cultura e pimenta. O país me surpreendeu. Assim como a quantidade de pimenta que consomem.
Comem pimenta com tudo. Fui a um mercado de rua e fiquei impressionada com a quantidade e variedade de pimentas que havia: aji, jalapeño, chili, diversos tipos de malagueta, e muitas outras. Coloridas e com diversos formatos, as pimentas pontificavam em todas as barraquinhas, e eram vendidas frescas, em conservas e secas. Havia também várias barracas oferecendo comidas típicas, as quais eram servidas com generosas porções de diferentes molhos de pimenta. Eu arregalei os olhos quando vi um senhor abrir uma maçã, e regá-la com uma colherada de pimentas antes de comer.
Durante a viagem eu tinha que acompanhar meu pai em diversos compromissos oficiais, alguns interessantes, outros bem chatos.
Entre outros, fomos a um jantar oferecido num lugar chamado Hacienda de los Morales, uma hacienda de mais de 400 anos de idade, atualmente transformada em casa de eventos.
Logo na entrada imponente, um corredor iluminado com tocheiros já fazia o clima. Os salões, revestidos de pesados painéis de madeira maciça, remetiam a uma época de fausto e luxo severo, que me fez imaginar os antigos donos, senhores feudais.
O jantar era para cerca de 200 pessoas, distribuídas em mesas para dez pessoas, iluminadas com velas, e talheres postos para um banquete. O cenário era majestoso e fiquei imaginando aquele salão, em outros tempos, com las señoras e seus leques rendados, los señores galantemente vestidos em trajes de toureiros, e, claro, o toque final, com o Zorro adentrando pendurado no lustre gigantesco por seu chicote.
Sentamo-nos em uma das dezenas de mesas redondas, decoradas com imponentes candelabros. Da cozinha sai a procissão de garçons engalanados em suas roupagens de honra, vestidos de toureiros, portando em seus braços os pratos que seriam distribuídos aos convivas.
Não posso deixar de mencionar que as recomendações de infância haviam sido devidamente refrescadas. Guardanapo no colo, mãos pousadas sem cotovelos, e deixar comida no prato, nem pensar.
Um dos toureiros depositou o primeiro prato diante de mim. Tratava-se de um ceviche de peixe. Meu pai me explicou que ceviche era um peixe marinado em limão, sem passar pelo fogo e me lançou um olhar significativo. Suspirei e comecei a comer. O peixe tinha uma textura agradável e sua acidez, acompanhada pelo molho picante, tornava o prato bem agradável.
O cardápio era de comida típica, claro. Era a minha primeira experiência com uma cozinha nova. Até o momento tudo bem.
O toureiro trouxe o segundo prato. Era uma espécie de coquetel de camarões com abacate e uma salsa de tomates bem apimentada. Os camarões estavam bem firmes, o contraste do tomate junto com o abacate macio era surpreendente, a pimenta na medida certa acrescentava sabor. Eu comecei a ganhar confiança e me achar cosmopolita e sofisticada.
O terceiro prato foi colocado à minha frente. Diante de mim havia uma carne de animal não identificado, coberta por um molho muito espesso e escuro. Mais uma vez meu pai, fonte inesgotável de conhecimentos, me supriu com informações sobre a cozinha mexicana. “Trata-se de um mole poblano”- disse ele. “É o prato nacional do México. Carne de peru com molho”. Ele se absteve de entrar em maiores detalhes sobre o prato, em cuja composição entra chocolate, provavelmente para evitar qualquer preconceito de minha parte, e, óbvio, me fulminou com o indefectível olhar.
Animada pelas experiências anteriores e coagida pelo Olhar, eu dei a primeira garfada.
Fogo líquido me entrou pela boca e se espalhou por todo o caminho até meu estômago. Hoje em dia sou bastante valente para pimentas, mas naquela época ainda não era uma grande apreciadora do condimento.
Comecei a ficar vermelha e não havia água suficiente para aliviar a queimação por dentro.
Lágrimas copiosas escorriam de meus olhos, sem que eu tivesse noção.
Meu pai, que até então estava distraído conversando com os outros convidados e ainda não havia provado o prato, me olhou e perguntou surpreso. “O que houve minha filha? Saudades de casa?”. Ao que eu miseravelmente respondi: “Não, pai. É a pimenta”.
Pela primeira vez ele me permitiu deixar a comida no prato.
Em Nova York, meu pai me levou a uma sucessão de restaurantes de diferentes nacionalidades, onde me fez provar, entre outras, a cozinha grega e turca, chinesa e japonesa.
Conheci os kebbabs, tomei sopa de ninho de andorinha, provei meu primeiro sashimi e me afogueei nos vapores do wassabi ( pela segunda vez a comida me fez chorar).
Aprendi muito naquela viagem. Porém, o mais importante foi o despertar de minha curiosidade e interesse pelos diferentes ingredientes, diferentes texturas e sabores, até então desconhecidos.
Um novo universo se abriu para mim. Eu pude ter uma noção da diversidade de nossa espécie, das infinitas diferenças culturais e ambientais que existem pelo nosso mundo, apenas pelas diferentes cozinhas que pude experimentar. Não pude deixar de comparar fascinada a dieta dos japoneses (eu havia ficado bastante impressionada com o sashimi e com os sushis) e o nosso nordestino. Somos todos parte de uma mesma espécie e, no entanto, há diferenças abissais entre as formas de se viver e de se alimentar. O que me leva à inevitável conclusão: somos aquilo que comemos.
Devo ao meu pai muito. A vida, evidentemente. Minha educação formal e subsistência.
Sobretudo, devo a ele o que sou hoje em dia. Afinal, foi ele quem me fez amar a comida que faço.
Foi ele quem me mostrou as cozinhas do mundo.