terça-feira, 29 de julho de 2008

A Ceia dos Cardeais

A Ceia dos Cardeais *

Eram três os cardeais, já idosos,. Da vida só lhes sobraram apenas alguns parcos prazeres. O poder e a bajulação já não os encantavam.A cena se passa no Vaticano. Sentavam- se à mesa. Comiam faisão, tomavam champanhe e falavam sobre o amor. A louça era Sèvre, em azul e dourado, os cristais mais puros, toalha de rendas e, enquanto a nobre ave era trinchada, em generosos nacos, suas mentes divagavam....

CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso
“Vamos nós ao faisão?
(Trinchando, com galanteria: )
Se permitem, eu sirvo. É um faisão doirado,
Mau político, sim, mas todo embalsamado
De trufas. Nunca fez encíclica nenhuma;
Não usou solidéu por sobre a áurea pluma,
E, se um dia assistisse a qualquer consistório,
Dormiria como eu - e como S. Gregório”.

E assim, em meio a garfadas, certamente embalados pelas trufas e pelo Xerez amadeirado, vieram à tona, junto com as borbulhas do champanhe, as lembranças mais remotas e contidas de antigos amores esquecidos.

“CARDEAL RUFO
Envelhecemos tanto!
CARDEAL GONZAGA, a RUFO
Estamos tão velhinhos..._
Já fez sol, para nós.. Sol! Pois não é verdade?
CARDEAL RUFO, como num sonho
Sol!
CARDEAL DE MONTMORENCY, a um dos fâmulos
Mais champanhe.
CARDEAL GONZAGA
Sol! _ Nós que somos a saudade.
O pensar que se amou, que se viveu... O amor!
_ Um tronco envelhecido a cuidar que deu flor!
Depois, num embevecimento:
Misterioso monte é neste mundo a vida!
Todo rosas abrindo, ao galgar na subida,
E a velhice, ao descer, toda cheia de espinhos...
_ Ai, tão velhinhos!
CARDEAL RUFO, tristemente
Tão velhinhos!
CARDEAL DE MONTMORENCY, olhando os dois,
com ternura
Tão velhinhos! “
Os três continuaram a dissertar sobre seus antigos amores, numa época em que ainda eram jovens e cheios de esperança. Durante o jantar, empolgados pelos acepipes e pelos régios caldos, rasgaram seus pudores, derramaram suas lágrimas por seus amores perdidos...
Lá pelas tantas.....
“CARDEAL RUFO, acercando-se também
do CARDEAL GONZAGA
Em que pensa, cardeal?
CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios
de brilho, a expressão transfigurada:
Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento...
é o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar...
Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar.
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora:
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!
O amor simplicidade, o amor delicadeza...
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade,
Numa ternura casta e numa estima sã,
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã...
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,
Como se em comunhão se entendessem as rosas,
Como se todo o amor fosse um amor sòmente...
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente! “

Bendito faisão, abençoadas trufas que extraem de uma alma já empedernida, lágrimas puras de amor e de saudade. Pois nessa vida, de muitos momentos sofridos, alguns momentos bem vividos é que fazem valer à pena a gente ter sobrevivido.

* PS: Peça em um acto em verso, representada pela primeira vez
no antigo teatro D. Amélia, em 28 de Março de 1902. Autor: Julio Dantas
PSS: De 1902 a 2008. O que foi que mudou? Os faisões que já não são tão doirados ou a nossa capacidade de evocar, como antigamente, o que vivemos e que foi bom?

Um comentário:

Ana Patricia disse...

Lindo! Quem dera vivêssemos ainda desta maneira , tão pura , tão rica tão simples , tão bela...